segunda-feira, 29 de junho de 2009

MINHA COPA DE 82



Aos doze anos eu deixara para trás as doenças todas, inclusive as respiratórias e ia me tornando aos poucos um esportista. Ainda era um magrelinho, mas era um tempo de Sócrates, lembram?

Apesar de gostar de todos os esportes, meus preferidos eram, naturalmente, o futebol e o vôlei, turbinado nesta época pela geração de prata – William, Montanaro, Bernard e Cia. E no futebol... Bom, no futebol tínhamos Falcão, Zico, Júnior, Cerezo – apesar das bobeiras contra a Itália – o magrão já citado, Luizinho, Orcar, Careca, ah! Tantos que dá vertigem só de lembrar. Eram dois para cada posição, pelo menos. Lembram do Carlos, o goleiro que foi revelado pela Ponte e que não foi à copa por que se machucou? E o Zé Sérgio que deu lugar ao igualmente sensacional Éder graças a uma contusão? E o Chulapa que foi no lugar do Careca?

Em 82 meu melhor amigo era o Júnior – não o da seleção, o afilhado de meus pais. Tinha a mesma idade que eu e a mesma paixão por esportes. E uma ainda maior: futebol de botão. Ele seria o personagem da minha copa, já que nós passávamos as férias sempre juntos, ocasião na qual realizávamos nossa “Olimpíada”.

Nossos esportes “Olímpicos” eram: futebol, vôlei, futebol de botão, dama, trilha e tômbola – uma espécie de bingo. Quem fizesse um maior número de pontos vencia as olimpíadas. Mas isso só começaria em julho e a copa de 82 começou em junho.

Aquele 2 a 1 na URSS me fez ter saudades do Carlos, que iria jogar no Corinthians e participaria da fase final da Democracia Corintiana. A falha do Valdir Peres no gol soviético foi dos momentos mais bizarros da história das copas. Mas o Doutor, com a elegância habitual e o Éder com aquele “tirambaço” colocaram os pingos nos is dos Comunistas comedores de criancinha. E olha que àquela altura eu já era de esquerda. Eu queria que a CCCP fosse vice-campeã, só para me vingar dos imperialistas Yanques.

Os jogos contra Escócia e Nova Zelândia foram passeios de gala, nos preparando para o melhor. Para quem não se lembra, a Argentina perdeu o primeiro lugar de seu grupo para a Bélgica e a Itália para a Polônia o que fez com que as duas seleções caíssem no nosso grupo na fase seguinte. Misericórdia... O que iríamos fazer com aquele arremedo de time que só tinha o Maradona e aquele outro que dependia de um tal de Paolo Rossi que nem gol marcava?

Quando ganhamos da Argentina por 3 a 1, com o Maradona expulso e nossos jogadores sentados no gramado esperando a poeira abaixar, nós – Júnior e eu – já estávamos em plenas atividades de nossa Olimpíada. Eu era melhor no vôlei e no futebol, desde sempre, apesar do Júnior ter uma estatura bem maior do que a minha. Eu era levantador do meu time da escola e era um meia-direita matador e tinha um passe espertíssimo.

Nas damas e nas trilhas ele levava a melhor. Isso lá era esporte? Fazer o que... No futebol de botão, área dele desde sempre, eu começara a perder meu complexo de vira-latas e andava ganhando num esporte onde ele sempre fora favorito. Tômbola era sorte, argh!

Assim, ficou para o dia 05 de julho de 82 o início da derradeira fase das Olimpíadas – o futebol, esporte mais nobre de nossa já nobre disputa. Não era uma partida apenas, era uma melhor de cinco!

Ele ganhara nas damas e nas trilhas, eu ganhara no vôlei e desbancara o favoritismo dele no futebol de botão. Apesar de meu mau humor com a tômbola – argh!!! – eu garantira mais um ponto nesta modalidade. De forma que ele tinha a obrigação de vencer - e bem - no futebol para ficar com o título nos critérios de desempate! Eu estava com a faca e o queijo nas mãos!

Foi com esta expectativa que entramos naquela segunda feira. Campinas e Barcelona eram vizinhas.

Todos sabem o enredo trágico que se seguiu a partir das 17h15min daquele dia fatídico. Nascia um mito - a segunda melhor seleção brasileira de todos os tempos - e eu, finalmente, entenderia o significado do que meu irmão me contara sobre a copa de 70. Não havia balões no céu de Campinas após nossa derrota, mas eu vira – EU VIRA – um futebol capaz de fazer qualquer céu se encher de balões.

Naquele dia eu não chorei. Menino crescido que era, tinha uma obrigação importantíssima a cumprir. Após a derrota de Sarriá eu garanti a minha vitória em nossa Olimpíada com uma vitória acachapante sobre meu melhor amigo Júnior. Não contem a ninguém, mas eu vinguei a derrota brasileira na Copa de 82...

Abraços.

O PRETO DADÁ


Escrevi isso há quase vinte anos quando Michael Jackson começou a ficar branco, com o objetivo de fazer uma música, que acabou nunca sendo composta:

“Jackson Sou"

Uns pretos me olharam nos olhos
Na vitrine transparente que é meu peito
Jatos coloridos de ódio contido
Dos pretos dos olhos de amêndoa

O preto dadá da civilização
O preto trará a sofisticação
Preto pálido, preto bom
Breton

O preto bonito da cara pálida
Destroça o romântico Byron
É Rimbaud pós-moderno
Mira a amêndoa dos olhos dos cegos

O preto soul permaneceu
O preto só anoiteceu
Preto fálico, preto ateu
Romeu

Acho que o menino que eu fui já estava de luto ao mesmo tempo em que se solidarizava com o Preto Dadá. Talvez, quando isso tudo passar, eu, finalmente, coloque música nesta letra..

Abraços.




terça-feira, 23 de junho de 2009

MINHA COPA DE 78


No outono de 78, quando se iniciou a da Copa da Argentina com o jogo entre Alemanha Ocidental e Polônia, meus pulmões urdiam silenciosamente um plano nem tão secreto que iria modificar para sempre os rumos da vida de todos em minha família. Não que eu me lembre de sentir algo diferente naquele período. Mas o futuro revelaria que isso seria verdade.

Com oito anos e tendo tido uma primeira infância um tanto quanto conturbada graças a diversos problemas de saúde, eu não tinha uma paixão especial por futebol nem por outro esporte. Primeiro foi a anemia profunda quando tinha um ano de idade. Depois as doenças comuns à idade e, por fim, uma caxumba e uma meningite no surto de 1975, que me deixaram bastante debilitado. Não demorou muito para começar a ter as crises de bronquite, até por que morávamos perto de uma zona industrial muito poluída. Definitivamente não tinha o perfil de atleta...

(Eu era o contrário de meu cunhado, que aparece num filme feito numa Super-8 em algum lugar dos Estados Unidos, jogando futebol com o pai. Eles estão felizes naquela imagem, pai e filho em perfeita comunhão. O menino chuta muito bem, meu sogro está radiante e extremamente orgulhoso. Nada me faria crer que teríamos em comum essa paixão tantos anos depois. Duas famílias tão distintas e tão parecidas na paixão pelo futebol).

O primeiro jogo de copas de que me lembro, portanto, foi o zero a zero com a Espanha. O legal foi assistir na escola e matar aula. Eu estava no segundo ano do ensino fundamental, minha professora era uma megera e minha letra, que era a mais bonita da turma quando eu me alfabetizara, tornara-se um garrancho de dar medo, sabe-se lá por que motivos, haja Freud para explicar. E a professora costumava, nos minutos finais das aulas, eleger um aluno que deveria anotar o nome de quem conversasse. Estes incautos conversadores tinham como castigo escrever dez vezes todas as tabuadas para a aula seguinte. Acontece que o Celsinho, um gorduchinho bem saudável que sentava atrás de mim, resolveu anotar o meu nome quando eu olhei para ele! Maldito Celsinho... Pena que não me lembro do nome da professora. Grande método de educação, hein, “Fessora”? Voltando ao jogo: foi chato. Nenhum gol! Anticlímax completo. Mas melhor do que escrever dez vezes as tabuadas do 1 ao 9...

Depois me lembro da vitória sobre a Áustria. Placar mínimo. Este vi em casa. Naquela casa de paredes verdes, lembra? Onde eu e minha irmã assistimos à final entre Corinthians e Ponte Preta no ano anterior. Dos jogos da segunda fase me lembro do empate sem gols com a Argentina e da vitória sobre a Polônia. Há dois lapsos quanto a estes jogos. Primeiro não me lembro de ter assistido a este último na escola apesar do calendário de 78 me dizer que era um dia letivo. Posso ter esquecido isso de propósito, como uma vingança contra aquele Celsinho injusto... Ou será que já estava com crise de bronquite? Mistério... Outra lembrança estranha: eu jurava que havia sido contra a Argentina que o Zico bateu um escanteio e o árbitro encerrou a partida quando o Brasil fez um gol, mas não é isso o que dizem as enciclopédias... Na verdade foi no jogo contra a Suécia, primeiro do Brasil na Copa. E foi um gol do Zico em escanteio cobrado pelo Nelinho. Criança pode inventar, não é? Afinal, se isso tivesse acontecido contra a Argentina sempre poderia pensar que, caso esta injustiça não tivesse se perpetuado o Brasil teria feito a final contra a Holanda...

Quando a Argentina venceu o Peru por 6 a 0 eu estava em casa, disso tenho certeza. Ainda tive vontade de ver Brasil e Itália. É o único gol de que me lembro como se fosse hoje: aquele petardo do Nelinho em que a bola fez uma curva impossível encerra a copa para mim. Sim, por que no dia da final eu subi a viela que dava para a rua de cima para jogar bola. Eu sabia que a Holanda seria campeã...

(Esta viela tem história. Foi por ela que eu subi para comprar pão pela primeira vez na minha vida sozinho. Eu disse ao atendente que queria um litro de leite e quatro “pons”. O Cara riu e disse que o certo era pães. Eu dei de ombros e pensei: adulto burro, não sabe plural como eu sei... Outra vez meu irmão sumiu de casa e eu fui achar nesta viela uma trilha de pedaços de gesso que ia até a avenida, bem longe. Eu parecia um personagem de João e Maria, sabe? A verdade é que o pobre não estava com o braço quebrado, estava com um pedaço de madeira fincado no braço e aquilo devia doer muito. Com medo, ele fugiu para a casa do padrinho).

Sabemos que a Holanda não foi campeã. A Argentina ganhava seu primeiro título, em casa, para alegria da ditadura militar de lá. De minha parte, o ano de 78 continuaria com uma crise de bronquite que me levou a uma internação de três dias. Eu não sabia, mas os médicos diriam à minha mãe que ela deveria me tirar de Santo André o quanto antes porque eu não sobreviveria muito tempo naquele clima e naquela poluição.

Em dezembro de 78, minha mãe levou a prole para passear em São Vicente. Não sei o que passou pela cabeça dela. Acho que queria que víssemos o mar antes de irmos para o interior. Há fotos deste passeio. As meninas de 18 e 17 anos. Os meninos de 13 e 8 anos. Eu, magrelinho e feliz, com as perninhas enfiadas na areia quase até os joelhos e o corpo pendendo para trás. Era um prenúncio: eu envergara, mas não caíra.

No dia 30 de dezembro, um caminhão baú estacionou em frente ao barraco verde. Entraríamos o ano de 79 em Campinas de onde eu só sairia em 95, depois de ver o Brasil campeão pela primeira vez, quando os pulmões, devidamente restabelecidos, me deixaram urrar minha felicidade plena...

Volto com a copa de 82.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

MINHA HISTÓRIA DAS COPAS



Nasci em 31 de maio de 1970, dia em que se iniciava a copa do México. Ela terminaria 21 dias depois com a vitória brasileira sobre a Itália, sabemos. Desta e da copa seguinte não tenho nenhuma lembrança, por motivos óbvios. Todas as edições subseqüentes tiveram relação muito importante com minha vida, para o bem ou para o mal. Mas destas eu falarei nos artigos seguintes.

Hoje quero falar da zona do limbo, da não lembrança, do não vivido. Interessante que muitas vezes pensei que gostaria de estar vivo em 2050, por exemplo, quando eu teria (ou terei?) 80 anos, para assistir à copa do mundo. Morrer significaria deixar de assistir às copas, da mesma forma que antes de nascer não pude vê-las. Coisa de maluco? Pode ser.

Em meu texto teatral “O teste”, publicado em 2004, o monólogo inicial da protagonista traz o seguinte trecho:

“Quem morre não está vivendo algo que nunca viveu: está apenas revivendo algo que sempre viveu antes disso tudo. Antes de sermos gerados por nossas mães, antes de estarmos em suas barrigas quentinhas e confortáveis, antes de tudo, não éramos nada. Quando morremos somos tão nada quanto éramos antes de nascer”.

É isso: sou em função das copas à que assisti. Assim, as copas de 30, 34, 38, 50, 54, 58, 62 e 66 são apenas números para mim, já que eu não existia. Minha relação com elas é estatística. Claro que sempre haverá aquela crônica inesquecível de um Nelson Rodrigues para nos desenhar com palavras a trajetória de nossas seleções nestas copas. Por isso mesmo precisarei pedir emprestada uma memória para falar de uma copa na qual eu existia, mas da qual não posso me lembrar.

Cabe frisar - antes de ir ao ponto que me interessa - que não há nada, nenhuma lembrança, nem mesmo emprestada, sobre a copa de 74. Eu tinha quatro anos e tudo o que sei sobre ela é o que todos sabemos através de jornais, revistas e televisão. Sabe aquela vez em que você tomou um porre e no dia seguinte não se lembrava de nada do que tinha acontecido? Pois é: a copa de 74 é o meu porre.

Voltemos à Copa de 70. Minha mãe deu à luz a este que vos escreve através de um parto normal às 7h15m da manhã do dia 31 de maio. Nem sei se ela se interessava por futebol, mas deveria estar muito ocupada se recuperando, cuidando de minhas fraldas, de minhas cólicas e me amamentando durante os 21 dias da copa.

Meu pai deveria estar dando um duro danado para garantir nossa sobrevivência já que nesta altura éramos quatro irmãos. Duas meninas, de 9 e 8 anos, um menino de 4, todos prestes a fazer aniversário, e eu. Não sei se a mais velha já trabalhava nesta época (se já não trabalhava iria começar logo depois, a vida dela nessa época não foi “bolinho”...), éramos muitas bocas a serem alimentadas.

De qualquer forma, não sei se minhas irmãs se interessavam ou não pela copa, se tinham condições de se interessar. A verdade é que nunca perguntei a elas isso nem tampouco elas me disseram algo sobre aquele período.

Veio de meu irmão, sendo que nem me lembro em que oportunidade, a minha memória acerca da copa de 70. Sei que era inverno e sei que era época de festas juninas. Vimos um balão no céu. Este balão - e sua beleza etérea para os olhos infantis - o levou ao dia em que o Brasil ganhou a final contra a Itália.

Segundo sua descrição, nunca houve um dia em que tantos balões estiveram no céu. Diante de tal deslumbramento, ele queria chegar até os balões. Para tanto, ele procurava pedras que pudesse escalar e, de sobre elas, dava saltos para o céu para tentar alcançá-los.

Na falta absoluta de memória daquela copa do mundo, empresto de meu irmão a poesia daquela vitória. Os gols de Pelé, Gerson, Jairzinho, Rivelino e companhia são balões cobrindo o céu para que crianças subam em pedras e saltem em direção ao éter.

Volto com a copa de 78.

NÓS E O IRÃ


Em 1978 eu distribuía, pelas ruas de Santo André, “santinhos” de Cláudio Lembo, candidato da ARENA ao senado federal. Eram tempos de distensão, estávamos às vésperas da anistia e voltávamos, aos poucos, ao exercício do voto. Eu tinha oito anos e achava o nome do partido da ditadura o máximo. Que bela pode ser a inocência.

No ano seguinte, o Brasil e o mundo seriam varridos por acontecimentos importantes. No ABC paulista, houve uma intensificação das greves dos trabalhadores da indústria metalúrgica e o surgimento de um importante líder operário. No Irã, islâmicos xiitas liderados pelo aiatolá Khomeini derrubam a monarquia autocrática pró-ocidente do Xá Reza Pahlevi e fundam uma república teocrática islâmica.

De minha parte, só comecei a ter alguma consciência política a partir do engajamento de minha irmã nas reuniões do Partido dos Trabalhadores, fundado em 10 de fevereiro de 1980.

Mais ou menos nessa época, minha irmã e sua turma de petistas decidiram se auto-intitular Xiitas. Era com orgulho que o faziam. Tratava-se de frisar ao mundo que eles tinham postura idêntica àquela turma do Irã revolucionário. Não ao ocidente, não aos Estados Unidos, não à pseudo democracia elitista. Sim à liberdade de credo, sim à volta às raízes.

Da mesma forma que os iranianos tinham o direito de se libertar da monarquia pró-ocidente, nós tínhamos o direito de nos libertarmos da ditadura e do capitalismo sem limites. Os iranianos tinham direito à sua escolha pelo islamismo e o ocidente que se lascasse com sua mania de querer catequizar a todos. As massas tinham direito a seu fortalecimento. A revolução islâmica do Irã era a versão oriental para a revolução francesa. Naquele momento histórico para as massas oprimidas, todos nos tornávamos “Xiitas”.

Com o tempo, passamos a utilizar o termo para designar toda a forma de radicalismo, mas ainda assim era um termo usado com orgulho. Sou radicalmente a favor da defesa das diferenças, sou Xiita a este respeito. Sou radicalmente a favor da emancipação feminina e, neste sentido, sou Xiita. Nenhum negro deveria ter piores oportunidades do que um branco e somos Xiitas quanto a isso. Minha irmã e eu somos, definitivamente, Xiitas. Minha amiga Sílvia Borges é Xiita, ela também vítima da ditadura militar.

O problema é que as páginas dos jornais me confundem. Talvez as coisas sejam um pouco mais complicadas para cérebros tão cartesianos quanto o meu. Não quero falar por minha irmã e por minha amiga Sílvia Borges. O que aconteceu com o regime que defendíamos para o Irã, contra o império Estadunidense e que nos fazia nos autodenominar orgulhosamente de Xiitas? Onde é que foi parar nossa aposta na liberdade? Perdemos o bonde da história?

Há trinta anos éramos jovens e acreditávamos em muitas coisas, tínhamos sonhos, a anistia nos apontava para o futuro, o Irã nos apontava para o futuro, o PT nos apontava para o futuro e o futuro é uma manchete de jornal que diz que Lula apóia a reeleição de Ahmadinejad a despeito de que todos os fatos nos levam a crer que o que estamos vendo é o recrudescimento de um regime que já estava longe de ser a utopia que sonhamos quando nos autodenominávamos Xiitas.

Estamos tomando um tombo retórico. Éramos radicalmente contra as opressões e neste caso se enquadram regimes como a ditadura militar brasileira, a direita fundamentalista de George W. Bush, o comunismo soviético e o cubano e a teocracia dos aiatolás. Afinal, somos a favor do que então, se tampouco podemos contar com utopias?

Vivemos no limbo entre a utopia e a distopia, entre o lembrar e o esquecer, entre o sonho e o pesadelo, entre o ontem e o amanhã. Hoje. E hoje não está nada bom. Os românticos é que tinham razão: quanto mais longe da inocência mais longe da felicidade. Que saudades de entregar santinhos do Cláudio Lembo.

P.S.: Nos próximos artigos vou tratar de Copas do Mundo. Para fugir do hoje.

terça-feira, 16 de junho de 2009

DE REPENTE, CALIFÓRNIA

De Repente, Califórnia (Shelter, EUA, 2007), é uma ótima diversão. Premiado em Sundance, notoriamente um festival que valoriza bons roteiros, conta a história de dois grandes amigos, de classes sociais bem diferentes e de como a vida de um deles - o pobre - se modifica por completo quando reencontra o irmão mais velho de seu melhor amigo.
O nome em português não ajuda. O nome original (abrigo) é muito mais apropriado. Mas o que esperar destas versões em português para nomes de filmes? Além disso o filme estreiou na semana da parada gay e está em cartaz do Shopping Frei Caneca, também conhecido como "Gay Caneca" (além do Espaço Unibanco). Então trata-se de um filme para o público gay, certo? Errado.
"Brokeback Moutain" era um filme para o público gay? Se isso realmente existe, este era muito mais um "filme gay" do que "De Repente, Califórnia". Se o primeiro mantém as mulheres à distância - lembra que a esposa do personagem de Heath Ledger descobre a relação dele com o outro cowboy e nada diz à respeito? - aqui as mulheres têm papel fundamental.
Se no primeiro o destino trágico da relação nos leva à lágrimas que pouco colaboram para um verdadeiro raciocínio sobre a aceitação das diferentes orientações sexuais, bem ao gosto de Hollywood, aqui as diferenças são apresentadas em todas as suas dimensões e não há espaço para chorinho no fim.
Há espaço, entretanto, para que pensemos nos modelos de relações existentes - sejam elas heterossexuais ou homossexuais - e nos vícios e virtudes que podem existir em todos eles.
Claro que não há apenas qualidades... O casal protagonista é de uma beleza que nos faz pensar em mundo idílico e não real. Os clichês que permeiam as fantasias homossexuais e que já fazem parte do universo erótico dos gays estão todos lá. Mas não dá para ser perfeito... Quer dizer, é perfeito e isso não existe...
Não posso dizer mais para não estragar as surpresas do filme. Aliás, já está à disposição em DVD um outro filme que gosto muito e que flerta com a questão da diversidade de forma distinta à de Hollywood. Trata-se de "Canções de Amor".
Divirtam-se.
- De Repente, Califórnia (Shelter, EUA, 2007)
Com Trevor Wright, Brad Rowe e Tina Holmes
Direção: Jonah Markowitz
Shopping Frei Caneca e Espaço Unibanco
- Canções de Amor (Les Chansons d'Amour, FRA, 2007)
Com Louis Garrel, Ludivine Sagnier e Clotilde Hesme
Direção: Christophe Honoré
Em DVD

segunda-feira, 8 de junho de 2009

DO LUTO E DA CULPA POR PERMANECER

Desde a queda do Airbus da Air France vivo uma muda expiação. Reler a última postagem foi uma tortura. Não pude achar nenhuma graça em minha tentativa imbecil de transformar medo em anedota.

A tragédia me remeteu imediatamente à minha experiência primaz com a dor da perda – Wagner, sempre Wagner... Lembro-me como se fosse ontem que nada me acalmava. Tudo em mim era uma culpa imensa por ter permanecido.

A maior parte das pessoas pensa que, na morte, a dor da perda é a experiência fundamental. Deve ser mesmo. Mas eu pensei, naqueles dias como agora, na experiência de se extinguir e na consciência gerada no momento da extinção.

Penso nos quatro minutos que dividem o primeiro incidente dentro da aeronave do momento em que chega a certeza de que se está morrendo. É isso que me apavora nos aviões. Do silêncio de minha dor espero que aquelas pessoas tenham perdido a consciência imediatamente.

Quando voltava do Rio na semana passada o aeroporto de Congonhas foi fechado para pousos e decolagens às 14h30min graças a uma forte chuva. Permanecemos no ar sobre a cidade de Ubatuba – segundo informou o comandante – até que a situação melhorasse. Durante esse tempo, ainda que estivesse absolutamente controlado, me era impossível não pensar no jato da Gol nos minutos que se seguiram à colisão com o Legacy. Voltei a pensar nisso no dia 31 de maio, dia do meu aniversário.

Estranhamente, quando a atendente da TAM me perguntou se eu queria janela ou corredor eu respondi a primeira opção. Não havia nenhum passageiro na fileira na qual viajei. O dia estava lindamente aberto. Pela primeira vez eu prestei atenção na costa do Rio de Janeiro. O mar imenso. Uma estreita e longa faixa de terra e o mar imenso. O sol quase me queimava. Como pode ser doce o medo.

Do outro lado do corredor uma dupla de comandantes, impávidos mesmo quando foi anunciado que estaríamos presos sobre todas as coisas, lanchava e conversava alegremente. Suas esposas seriam mulheres muito bem informadas sobre as estatísticas acerca da possibilidade de se morrer em vôos ou apenas mulheres resignadas com o fato incontestável de que todos nos perderemos uns dos outros uma hora destas?

Sim, perder alguém é uma terrível experiência. Todas as vezes em que penso na palavra “terrível” é disso que me lembro. Foi esta palavra que repeti para mim mesmo, como para me descrever o que estava sentindo há quase 25 anos.

No entanto, tanto mais terrível era compreender o corte seco, a ruptura, a violência da interrupção aguda e repentina que acontecera com o outro, com o que se fora. Desde então o lugar comum que atribui o sofrimento a quem fica não me acalma.

Minha culpa, minha máxima culpa por permanecer. É como me senti na primeira vez e é como me sinto agora diante da última tragédia.