sexta-feira, 1 de maio de 2009

PRIMEIRO DE MAIO DE 1994

Onde você estava na manhã de primeiro de maio de 1994? Eu jamais vou me esquecer...
No ano anterior, eu ainda vivia na Moradia Estudantil da UNICAMP. Era lá, numa máquina de escrever elétrica "Brother" - comprada após eu me cansar de escrever em máquinas comuns, numa loja "Sears" que não existe mais - que eu escrevia os textos teatrais com os quais eu e minha companhia de teatro ganhávamos a vida. Eram peças sobre qualidade total, segurança no trabalho, temas, enfim, relacionados ao mundo corporativo.
Apesar de termos dinheiro não tínhamos sede, o que me irritava bastante. Finalmente, após eu praticamente dizer que eu iria embora do grupo caso eles não concordassem em alugar um lugar que nos servisse de sede - e de resto levar comigo a "galinha dos ovos de ouro" de todo mundo, ou seja, meus textos - finalmente alugamos uma grande casa ao lado da antiga rodoviária de Campinas onde, anos antes, um grupo de alunos de artes cênicas tinha feito uma república com umas 20 pessoas. Era tanta gente que havia colchões espalhados por todos os cômodos da casa, menos na cozinha, é claro.
Havia na casa um amplo espaço para ensaios no andar superior e embaixo vários cômodos, o suficiente para fazermos um escritório e termos ainda dois quartos para abrigar quem, eventualmente, precissasse dormir por lá. Um destes quartos eu passei a dividir com um colega da companhia. Assim, morávamos no local de trabalho. Esse colega - Rogério - levou para nossa sede uma TV que ficava em frente à mesa do escritório, num suporte acima da porta, que levava para a cozinha. À esquerda da mesa, ficava uma grande porta de vidro que dava acesso à sacada e que nos dava a visão de uma praça não muito atraente. À direita, ficava um sofá grande o suficiente para abrigar três pessoas.
Não entendo o motivo pelo qual não posso me lembrar da presença de Rogério naquela manhã. O mais estranho é que me recordo dele à tarde, quando eu saí para um compromisso previamente assumido... Estranho também porque ele costumava ver comigo aos programas que eu gostava de assistir.
Me lembro como se fosse hoje que, antes da imagem, ouvi o narrador dizer: "Bateu forte Senna. Bateu forte Senna!" Isso ainda ressoa em meus ouvidos, mesmo quinze anos depois. Acho que só senti algo semelhante em 11 de setembro de 2001, quando vi pela TV o atentado às torres gêmeas. Lembro da cabeça pendendo para o lado e da esperança que todos tivemos - apresentador incluído - com esse movimento que, saberíamos depois, era involuntário. O que aconteceu a seguir todos sabemos. Ayrton Senna morreria em função do acidente poucas horas depois.
Naquela tarde eu fui visitar Dona Maria Alice, personagem que já apresentei neste blog. Eu não a via há anos. Mais uma vez havia uma morte entre nós. A primeira acontecera dez anos antes, em julho de 1984. Foi naquela mesma sala que eu disse diante de outros cerca de vinte adolescentes, aos prantos: "Eu amava o Wagner".
Em primeiro de maio de 1994, falamos muito tempo sobre a outra morte, a de Ayrton. Também sobre a de Wagner. Foi nesta tarde que vi pela última vez Henrique, filho de Maria Alice e meu antigo colega de classe. Eu ainda a veria em 1996, na estréia de "Mr. Moquimpó", meu primeiro espetáculo após a formatura da UNICAMP. Sei que ela se orgulhava de mim. Deve se orgulhar ainda se é que ainda acompanha minha carreira.
As cores daquele primeiro de maio, a temperatura, tudo sempre volta, a cada ano. É uma melancolia calma. Tão calma que assusta. Naquele dia morria em mim a certeza de que basta talento para se alcançar o sucesso. Pode parecer estranho, mas foi isso o que significou a morte de Ayrton Senna para mim. Eu tinha raiva de nosso fracasso. Sim: a morte dele era o MEU fracasso também!
Eu nunca consegui, na longa Era na qual Schumacher foi imbatível, admirar sua pilotagem. Muitos puderam ter algum prazer, achar que entre eles havia algo em comum. Eu nunca pude. Tive raiva de Schumacher até a sua aposentadoria. É como se ele fosse um pouco responsável pela morte de Senna. Era ele quem o perseguia implacavelmente antes que Senna entrasse pela última vez na curva Tamburello.
Talvez o marketing de bom moço tenha colaborado para isso. Não chegavam até nós o possível lado "ruim" de Senna. Ou talvez eu os tenha apagado, não sei. A verdade é que, no enredo que eu tecera, ele era o mocinho da história e mocinhos da história não podem, não devem morrer! E Alain Prost - sempre defendido por Jean-Marie Balestre, recentemente falecido - alcançara o quarto título mundial no ano anterior, era muito injusto! Então não valia mesmo a pena ser honesto, gentil, bom caráter, justo, nada disso! NÃO VALIA A PENA ser bom. Isso era terrível!
Não fui ao enterro de Senna. Como não fui no de Wagner. Não me arrependo de não ter ido ao do primeiro, mas o fato de não ter ido ao do segundo ainda me aterroriza.
Na TV do Rogério, sozinho, deitado no chão do escritório, assisti à final da copa na qual o Brasil se sagrou campeão, dois meses depois da morte de Senna. Desta vez me lembro o motivo pelo qual Rogério não estava: era julho e ele visitava a família no Rio. Naquele dia, durante a cobrança de pênaltis, achei que iria morrer e tive medo. Em primeiro de maio de 1994 não tive medo. A melancolia é corajosa e é isso que me assusta nela...

Um comentário:

  1. Querido mano,

    acho que já tem gente arrependida de ter votado "não" no quesito esporte. Acho que pensaram que todo mundo trata disto como o Galvão Bueno, um chato... Ledo engano. Você escreve como a coisa é: um tecido, cheio de fios entrelaçados... esporte, arte,literatura, política enfim, vida.

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