Morávamos num barraco verde, acho. Sim, era verde. Meus pais mudaram do bairro Capuava, atrás da Petroquímica, para o Jardim do Estádio. Ao nosso lado vivia a Dona Maria, uma negra retinta com seus inúmeros filhos fortes e bonitos. Sei que eram bonitos. Tenho certeza disso ainda que não me lembre deles.
Era no terraço da casa dela, de Dona Maria, que estávamos naquele dia em que me tornei Corinthiano. Meu pai era São-Paulino. Estranho que agora, tanto tempo depois, o pai e o irmão de minha mulher sejam São-Paulinos e ela seja Corinthiana... Eu de família proletária, ela de família tradicional. Mas estou fugindo da questão central.
Falávamos - eu e meus amigos, por volta de 75 - sobre futebol e eu ouvi pela primeira vez aquele nome: Corinthians. Como achei bonito... Mal sabia que se tratava de um nome inglês, só achei bonito. Minha opção pela beleza, pela estética, pelas artes, já se apresentava ali. Eu torcia pelo São Paulo já que meu pai me influenciara.
Naquele dia eu disse: "Pai, posso ser Corinthiano?" Ele disse: "Sim, você pode". Passei a ser. Ou teria inventado esta teoria? Sim, por que minha irmã, que nesta altura já tinha condições de compreender o que se passava no país, poderia perfeitamente ter me influenciado, de alguma forma, a torcer pelo time das massas, o time dos sofredores, o time dos oprimidos, o time daqueles que tinham na ditadura militar seu maior inimigo. Mas, em minha memória, eu me tornei Corinthiano após a anuência de meu pai.
Para meu infortúnio e o de milhões de outros torcedores, o time não ganhava nada há anos. Eu não sabia disso. Isso não importava para um menino de cinco, seis anos. O nome do time era o mais importante. E o nome era lindo. O mais lindo de todos.
O barraco de paredes verdes tinha três cômodos e um banheiro. Ficava acima da altura do terreno. Era preciso subir um lance de escadas. Chegava-se então à cozinha. Ao fundo deste cômodo ficava o banheiro que era usado pelos seis membros da família. À direita da cozinha havia uma sala-quarto. Era aí que dormíamos os filhos. Como cabíamos todos ali? Não me lembro bem. Quantas camas havia? Sei que dormia ali já que no surto de meningite de 75 eu cai de uma das camas de solteiro deste cômodo e fiquei longo tempo no chão antes que minha mãe me ouvisse e me acudisse. Mas não sei como cabíamos todos... Depois deste quarto-sala havia um outro quarto à esquerda onde dormiam meu pai e minha mãe.
No quarto-sala estavam a TV e uma biblioteca. "O FBI não Perdoa" era um dos livros. Minha irmã insistia em ter livros, mesmo naquele lugar. Como ela encontrava espaço? Ela sempre foi uma completa alienígena. Ainda hoje é. Eu, definitivamente não a entendo! Antes, porque conseguia, em meio a tanta pobreza, ter livros, cultura e opiniões. Hoje, por que, em meio a tanta violência e mediocridade, ainda consegue querer pensar em educação. Definitivamente eu não a entendo...
Onde estavam todos naquela noite de 1977? Em minha memória estávamos apenas ela e eu. Era um grande sofrimento e um gol apenas. Não vou olhar no "google" agora para saber de quem foi o gol. Só sei que o Corinthians ganhou da Ponte. Um a zero. Nós nos abraçávamos. Nos beijávamos. Eu tinha sete. Ela dezessete. Eu nem sabia o que acontecia. Ela deveria estar pensando que aquela era uma vitória não do Corinthians, mas dos milhões de pobres oprimidos espalhados pelo país.
Ainda se passariam muitos anos para que os oprimidos se manifestassem. Ela ajudou a fundar o PT, muitos anos depois. Nós choramos quando Jacó Bittar foi eleito prefeito de Campinas. O PT virou o que sabemos. O Toninho do PT morreu. Muita coisa morreu no PT. Mas continuamos Corinthianos.
Hoje à tarde, quando terminar o campeonato paulista, estaremos, outra vez, assistindo a uma parte da história. Escrevo antes do jogo, então não sei se somos campeões invictos, campeões com uma derrota ou vice-campeões após uma derrota histórica. De qualquer forma, nossas histórias de plebeus se aproximam da história de outro plebeu, favelado, morador de barraco, sei lá que outras coisas loucas aconteceram à ele além daquelas que sabemos pela mídia.
Espero que o Ronaldo - o outro plebeu - apenas esteja feliz. E que ele tenha memórias tão emocionantes quanto as que tenho. Como eu e minha irmã nos deitando, em 1977, repetindo como crianças felizes: "Boa noite Corinthiano". "Boa noite Corinthiana".
Até amanhã.
O gol foi do Basílio, o gol mais chorado da história do futebol. Meu pai cobriu essa vitória pra globo na época, me disse que outra manisfestação popular tão grande como aquela só aconteceu no Brasil durante manifestações pelas diretas. Naquela mesma noite o Vicente Matheus(presidente do clube na época) foi a única pessoa que pode entrar no Fasano descalço, ele tinha perdido os sapatos na avenida Paulista durante as comemorações.
ResponderExcluirTio Vinix, quem é seu pai? Adoraria saber mais sobre ele. E o Vicente Matheus era o máximo!
ResponderExcluirBem, como corinthiana que nasceu assim... Sim, sei que este é um lugar comum. Mas é assim mesmo. Corinthiano gosta destes lugares comuns, de dizer "te amo timão", de dizer que "nasci corinthiano". No meu caso, isto é verdade, não sei de inteira ou meia. Certeza mesmo é que nunca fui outra coisa, que não tenho um começo pra esta história, como meu irmão, que "virou" corinthiano com permissão de meu pai. Mas continuando... Como corinthiana que nasceu assim, é um fato - e um deleite - que muitos momentos de minhas histórias sejam marcados por esta faceta.Me lembro de um dia que eu estava à frente de uma passeata, segurando uma faixa que era o carro chefe do movimento do qual eu participava. Esta eu gritando palavras de ordem quando avistei, na calçada, um jogador do timão - o Neto. Por aqueles dias havia um burburinho de que ele iria deixar o timão e nós simplesmente amávamos o Neto. Fiquei meio sem saber o que fazer, dividida entre o dever e a paixão. Fiquei com os dois: adiantei o passo - a passeata teve que correr mais - e alcancei Neto. Segurando a faixa com todo o vigor eu gritei: "Neto, não larga o timão não". Um grito tão forte que meus amigos não entenderam nada. Que palavra de ordem era aquela? O Neto me olhou, sorriu e continuou no seu caminho. Eu continuei minha passeata, mas toda vez que eu puxava uma palavra de ordem e os "companheiros" respondiam, tudo o que ou ouvia era timão eh oh timão eh oh... E dizem que não se mistura política com futebol!!!
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