sexta-feira, 13 de maio de 2011

O QUE TENHO A VER COM A MORTE DA LACRAIA...



            Confesso que tenho pouca afinidade com manifestações de alegria e felicidade extremas. Nunca tive muitos motivos para acreditar na possibilidade de vivermos descendo na boquinha da garrafa, pulando carnaval, dançando lambada ou ouvindo o Chimbinha e a Joelma do Calipso com entusiasmo.

            Isso poderia ser usado contra mim, portanto. O cara é mal humorado, viciado em tristeza, fraco do estômago, vê sempre o copo meio vazio. Pode ser.

            Então é possível que só a mim tenha me parecido que as pessoas assistiram a uma história e eu a outra no caso da morte do moço a quem chamavam de Lacraia.

            Em mais de um veículo vi e bem mais de um articulista escreveu sobre a revolução que a moça provocou no funk carioca, que ela rompeu preconceitos, que sua felicidade contagiante deve estar agora fazendo rir e dançar até o mais taciturno dos santos dos céus.

            O que ninguém diz é que Lacraia foi, até anteontem, motivo de piada, de chacota, era ridicularizada por ser pobre, feia, magra, negra, viado, pintosa e representante de um tipo de “arte” que nem todos reconhecem. Não dizem que foi palhaço da zona sul, bobo da corte de patricinhas e mauricinhos endinheirados que tinham para onde voltar depois do baile. Que aumentou a audiência de programas vespertinos de qualidade duvidosa, enquanto seus apresentadores espiavam o Ibope subindo graças à degradação de um ingênuo. Alguém viu no youtube um destes programas dizendo que a Lacraia era tão burra quanto a tal eguinha da música que ela dançava?

            Sou o único que vê tristeza nos olhos do rapaz? Ninguém pensa em sua solidão, em como se sentia interpretando o único papel que nossa sociedade permite a pessoas que, de outra forma, não teriam papel nenhum em nenhum lugar? Será que nós, os bem nascidos, sabemos o papel que a pobreza reserva para os realmente pobres?

            Lembro-me bem que, há cerca de dez anos, fui ao show de uma drag Queen no centro de São Paulo. Era um ator macérrimo, negro, muito parecido com Lacraia, e o show consistia basicamente em fazer piadas sobre sua própria condição: viado, pobre, preto, com aparência doentia – a tal ponto de, em uma de suas piadas, contava que, quando passava em frente ao Hospital Emílio Ribas, um centro de referência no tratamento da AIDS, as enfermeiras gritavam: Fulano! Fugiu daqui de novo?

            Gostaria muito de ter, ao menos, a esperança de que a Lacraia possuía a consciência que essa drag possuía para rir de si mesma. Infelizmente minha opinião é que são casos muito distintos. Lacraia era ingênua e foi usada por nós.

            Quando fiz o personagem “Naná” do filme “Querô” – de Carlos Cortez, baseado na obra de Plínio Marcos – me aproximei muito do universo do qual estou falando agora. “Naná” era feio, pobre, solitário, mal amado, carente, desprezado por si mesmo e por todos ao seu redor e tão miserável que sua única forma de conhecer algo parecido com amor era trocar, com um garoto de 15 anos, um pouco de sexo por um prato de comida. Era um pária que não possuía dilemas morais para cometer pedofilia e se aproveitar da fome de um garoto para sentir, ao menos uma vez na vida, algum afeto.

            Somos todos muito parecidos com este personagem, e não gostamos disso. Lacraia tem muito deste personagem e é melhor para a maioria de nós não tocar nesta questão – por isso ficamos na superfície, na tal “alegria de viver”.

            Gostaria muito de saber a verdadeira causa de sua morte. Pneumonia? Desculpe, mas não se morre mais disso no século XXI. Outra doença crônica? Qual? Mesmo a AIDS, que a drag Queen de minha história associou a pessoas muito magras – como ela mesma, como eu, como tantos, mesmo porque todos nós fazemos esta associação graças às primeiras vítimas, principalmente as da década de 80, vide Cazuza – não mata mais como antes. Não se a pessoa tem acesso a tratamento, coisa que não é difícil num país que é uma das referências de tratamento gratuito de HIV positivos.

            A insistência da família em não revelar a causa de sua morte leva-me a digressões. Lacraia quis dignidade ao menos na morte. Muitas doenças matam, mas nenhuma é pior que a morte social a que pobres e outros párias sociais já estão indelevelmente condenados.

E como ela há milhares, talvez milhões no Brasil. Mas só enxergamos suas coreografias. Jamais olharemos fundo nos olhos destas pessoas porque temos medo de ver a tristeza por trás da alegria forçada.

            Enquanto isso, hoje o congresso nacional arquivou o projeto de criminalização da homofobia. Tristes trópicos...

Um comentário:

  1. Querido,
    palavras certeiras as suas. Tristes trópicos que fazem chacota, usam, degradam. E tristes mundos que festejam mortes em nome de Alá, em nome da "justiça", em nome da "civilização": Lacraia, torres gêmeas, Bin Laden.

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