sábado, 20 de fevereiro de 2010

MINHA COPA DE 90



A era da inocência terminara. Para alguns isso se dá aos 18 ou 20. Para mim aconteceu aos 14 e só foi se intensificando. De forma que em 1990, aos 20 anos, eu deixara de ter com o esporte a mesma relação de afeto.

Na verdade, àquela altura, eu já era um adulto na acepção plena da palavra. Assim, se em 86 eu estava envolto por amores e emoções adolescentes, em 90 eu já entendia o que era o trágico no sentido Nietzschiano.

No fim de 89 eu e meus colegas de teatro embarcáramos para uma viagem de 40 dias pelo sul do país. Fomos “mambembar”. Levamos uma adaptação de “Valsa n. 6” de Nelson Rodrigues, um texto curto de Tchekhov , “O Pedido de Casamento”, um fragmento do “Woyzeck” de Büchner e um infantil chamado “Do Outro Lado da Cerca” – escrito por um ator e diretor gaúcho chamado Hermes Mancilha, que foi uma espécie de anfitrião.

O Cazuza havia lançado o LP (sim, naquela época ainda era LP) “Burguesia” e eu o ouvia sem cessar naqueles dias em que passamos na praia de Quintão. Tudo estava ruim, o clima entre nós era péssimo, quase não tínhamos o que comer – eu tinha algum dinheiro das aulas que dava em Campinas, mas os outros estavam duros – e uma quase-guerra se instaurou no grupo.

Pelo mundo, as pessoas estavam morrendo de AIDS e a gente estava querendo apenas viver nossa sexualidade plenamente. Que época para isso...

E houve a Fátima. A morena que se apaixonou por mim e me fez me apaixonar por ela numa noite na praia enquanto eu cantava “Tigresa”. Começamos a namorar lá mesmo. Dias depois ela veio embora para São Paulo.

Então surgiu a Vera. Moça de Canoas, noiva, mas apaixonada por mim a ponto de querer vir para São Paulo e abandonar tudo, inclusive um noivado de sei lá quantos anos.

O Hermes foi atropelado e foi parar num hospital com ferros pela perna toda. A Bel fraturou o pé na virada do ano pulando onda.

Quando voltamos eu tomei conta dela e o A.J. me acusou, durante anos, de ter melado o romance entre os dois...

Fátima e eu terminamos na São João depois de uma briga idiota. O Ilion Troya veio para o Brasil com o “The Living Theater” na mesma época em que chegou a notícia de que a Vera havia morrido num acidente de moto (o noivo sobreviveu).

Deve ter sido em maio que eu suportei 20 horas dentro de um ônibus para visitar Porto Alegre que não estava nada alegre. Verinha morrera e Hermes ainda se recuperava do acidente. Foi a primeira vez que eu ouvi “As Quatro Estações” da Legião Urbana: “E há tempos nem os santos têm ao certo a medida da maldade/ E há tempos são os jovens que adoecem/ E há tempos o encanto está ausente e há ferrugem nos sorrisos/ E só o acaso estende os braços a quem procura abrigo e proteção”. Hermes também morreu jovem tempos depois.

Eu, para sobreviver, dava aulas de educação artística numa escola da periferia de Campinas, todas as noites. Saia da UNICAMP às 18 horas e atravessava a cidade. Por isso não assisti à maior parte dos jogos da Copa de 90, que aconteciam entre as 17 e as 21 horas – horário de Brasília.

Na derrota do Brasil para a Argentina, o pragmatismo de Lazaroni não me satisfazia. De resto, não satisfazia a boa parte da torcida brasileira. Mas é estranho, olhando em perspectiva, como parece fazer sentido aquela seleção. Não poderia haver poesia mesmo naqueles tempos bicudos. Em 82 a poesia fazia sua exibição de gala num mundo que ainda não conhecia a AIDS (que estava encubada, pronta para explodir e implodir a revolução sexual) e em 86 ela agonizava e dava seus últimos suspiros após a derrota das “diretas já”. O sonho não acabara na década de 70, ele acabava no fim da década de oitenta. O muro de Berlim caíra em 89 e todos os esquerdistas percebíamos o equívoco que fora a aventura do “socialismo real”. Cada época tem o futebol que merece.

No dia da disputa do terceiro lugar, em 7 de julho, Cazuza morre. Uma nova época estava surgindo, mais sombria certamente. No dia seguinte, 8 de julho, terminava a Copa de 90 com a vitória da Alemanha, o país do “futebol-prosa”, segundo definição de Pasolini.

Depois de tantas coisas realmente importantes, a copa tornou-se só uma remota lembrança. Em outubro de 90 eu juntei minhas poucas coisas e fui-me embora da casa de minha mãe. Era o ponto final de um processo que começara em julho de 84. Naquele dia eu entendera que, no fundo, estamos todos sós. Depois da copa de 90 tomei para mim o timão de mim mesmo. A questão era: o que eu faria com a minha solidão?

3 comentários:

  1. lindo....o amadurecimento nunca vem só.

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  2. espero que em um próximo pos vc responda a questão.

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  3. Acho que, aos poucos, vou fazer isso.
    Quem é você "ANÔNIMO"?

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