quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

CARTA RESPOSTA A UMA AMIGA

Querida Amiga:

A demora em minha resposta deveu-se, em primeiro lugar, à tristeza que me invadiu nos dias que se seguiram à tragédia que motivou meu último texto e, em segundo, à dificuldade de responder aos elogios que vieram de diversas partes com relação à qualidade estilística e poética dele.

É verdade que não pensei muito nisso quando usei o termo “crioulo”(ver nota 1 no fim do artigo), mas há aí uma sutileza passível de entendimento apenas a quem conhece bem a história do Haiti e de sua colonização. E a manipulação poética com o termo "créole" tampouco foi pensada, foi antes sentida.

Como já disse não me lembro quase nada do texto que escrevi sobre a Vila Parisi(2). Lembro-me, no entanto, do menino que fui e que aquele foi um ano de muito sofrimento e amadurecimento para mim.

E – ai! – como é difícil, por vezes, separar-me das coisas que escrevo... É tão diferente de interpretar um personagem! Pode-se voltar para casa incólume, muitas vezes – senão quase sempre. Mas escrever não me dá esta possibilidade. Sinto-me ainda muito misturado.

Compreendo que você queira sacudir meu pessimismo. É claro que sei que há muita gente boa no mundo. É claro que sei que podemos colaborar. É claro que ESPERO que o planeta tenha futuro. Já disse em outro texto, aqui mesmo, que pessoas como você e minha irmã me dão esperança. Cansa, no entanto, abrir os jornais e ver que há um universo de coisas conspirando contra.

Na maior parte do tempo vivo assim: esqueço de tudo e faço minha parte, incentivo quem estiver por perto a fazer o mesmo, mantenho-me honesto, digno, afável, carinhoso, amoroso, firme, justo. Muitas vezes cometo pequenos erros, repenso, reparo, refaço, peço desculpas sem carregar o peso da culpa cristã já que somos todos falíveis e humanos.

Mas confesso que há dias – principalmente nestes dias de tragédias coletivas advindas basicamente da estupidez humana – que desanimo sim, que desespero sim, que desacredito sim... Por que em 1989 um terremoto de 7,1 na escala Richter matou 67 pessoas nos Estados Unidos(3)! O que mata é a miséria!

Nestes dias eu me dou o direito de permanecer por um tempo só, calado, triste, vivendo meu banzo(4) (para usar outro termo de nossa herança negra). Até para renascer.

Então, vamos sim fazer um movimento, um manifesto, um show, algo que chame a atenção para os Haitianos nestas horas difíceis. E peço a sua ajuda para me lembrar de fazer isso outras vezes, para eu lembrar de não esquecer do Haiti quando meu banzo passar.


Com carinho.

(1) A palavra crioulo designa um povo e um dialeto português falado em Cabo Verde e em algumas outras regiões de colonização portuguesa. Ao mesmo tempo seu correspondente em francês - créole – designa também a língua falada nas Antilhas Francesas, Haiti incluído, numa espécie de unificação de nossos ancestrais.

(2) Em 1984 um incêndio na favela de Vila Parisi, em Cubatão, causou comoção nacional e foi tema de um texto meu igualmente emocionado, quando eu tinha 13 anos.

(3) Estou citando João Pereira Coutinho que escreveu sobre isso na Folha de ontem, 19 de janeiro.

(4) Nostalgia mortal dos negros.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

PORTO PRÍNCIPE



Minha alma crioula passeia atordoada pelas ruas devastadas de Porto Príncipe. A poeira, a destruição e o medo misturam-se ao cheiro de morte e dor.

A miséria – que já era tanta! – aumenta a cada passo, a cada olhar, a cada pele negra e pobre, a cada feição assustada.

Eu sou Porto Príncipe nas noites que virão, na desesperança incessante, na crença de que o deus da morte fez morada por lá.

Sou o castigo do deus da morte e sua crueldade, seu humor estranho, dantesco, sádico.

Minha alma crioula vai se encontrar com os santos protetores de Porto Príncipe e eles me mirarão com aquele semblante de quem diz que avisou que isto me aconteceria.

A cada amanhecer, Porto Príncipe será uma mãe vingativa dizendo num tom grave e quase surdo que deveríamos ter sido bons meninos para que não sofrêssemos as conseqüências.

Quererei ser órfão destas coisas quando olhar ao meu redor e me certificar de que a destruição é ainda maior do que pensei, do que sonhei em meus pesadelos mais recônditos.

E serão negros e mulatos e crioulos como eu aqueles que mais sentirão dor nas noites de Porto Príncipe.

Não rezaremos, não oraremos, lançaremos nossa tristeza pelos cantos, misturaremos nossas lágrimas com o pó que ainda irá subir por muitos dias pelos dias que virão em Porto Príncipe.

O branco do palácio, o rosa do edifício ali à esquerda, as cores todas misturadas à melancolia de todas as coisas que nos rodearão, tudo muito amalgamado à pobreza de antes, à desolação de sempre, à esperança de nunca. Nunca.

Nossas mãos tocarão as pedras de Porto Príncipe, nós as empilharemos usando nossas lágrimas para molhar o cimento. Sabemos que é o único edifício que permanecerá.

Todos os corpos sobreviventes estarão pintados pela clareza do pó que permanentemente subirá de Porto Príncipe nos dias que virão.

Enfim, quando o mundo voltar a ver-nos crioulos como antes, poderá esquecer-se, já que só Porto Príncipe pode suportar por tanto tempo o esquecimento perene de todas as nações.