"Chega de mentir, de sofrer, de seguir um messias torto, frio, estéril. Quando deus morrer de tédio e de amor, o homem, em deus, verá sua imagem e semelhança.
Eu sou o homem, escapei à peste por pouco, não me engajei em nada. Me engajei naqueles jogos juvenis de guerrilhas não armadas. Nossas histórias - mesmo as de ficção - falam de amor, não de violência".
Esta é a primeira estrofe da música que encerrava o espetáculo "Um Certo Faroeste Caboclo" (1998). Lembrei-me disso - no bojo do aniversário de 16 anos da estreia do mesmo - quando li uma entrevista que dei a uma revista que fala sobre televisão.
Nela - na entrevista - falo sobre sucesso, cito bens materiais e outras coisas que o dinheiro compra e falo sobre sucesso, lincando, sobretudo, sucesso ao fato de ter tido uma infância muito pobre e viver bem e feliz graças ao que conquistei com minha profissão.
Lembro que quando escrevi a música acima eu não estava e não era feliz. Mas se algo não se modificou de lá até aqui é uma percepção de mundo segundo a qual o amor deveria vir em primeiro lugar. Amor ao próximo, aos meus semelhantes, aos meus diferentes, a alguém em especial, à humanidade.
Isso inclui senso de justiça, de igualdade e fraternidade, de oportunidades iguais para todos, coisas que se modificaram bastante no país desde então, apesar de continuarem ainda distantes do que considero ideal.
Claro que por tratar-se de uma canção feita para uma peça de teatro, há um pouco de ficção. Não acho que mentir seja necessariamente ruim, não parei de sofrer, obviamente. Mas há coisas que continuam iguais e vão ser assim para sempre.
Continuo achando que precisamos "matar" esse deus de algo bem humano - como tédio ou amor - para que ele passe a ter empatia pela criatura que, supostamente, ele criou. Para que pessoas como eu possam ver deus com mais simpatia.
De 98 para cá ficamos - a humanidade - mais preconceituosos, mais caretas, estamos matando viados como nunca, continuamos machistas e misóginos, tratamos pretos e pobres como coisas - vide "rolezinhos" e os discursos de ódio de gente dita "de bem" como Mainardi e Constantino.
Está cada vez mais difícil falar em ideologia ou em esquerda e direita! É como se não houvesse mais luta de classes. Em que lugar idílico vivemos, não sei. Devo estar em outro país, em outro momento.
Lembro que quando coloquei na letra da música a citação a Walt Withman (Eu sou o homem, eu sofri, eu estive lá, da qual usei só a primeira frase) eu pensava, sobretudo, no fato de Renato Russo ter morrido de AIDS no mesmo ano em que o coquetel chegou ao mercado e que era quase impossível imaginar que ele não tivesse acesso aos novos medicamentos. Isso era especialmente angustiante porque eu sabia, no fundo, que a questão não era essa, que era uma tristeza ancestral que matara Renato. E, que, fatalmente, me mataria também.
Num trecho suprimido da letra eu dizia:
"Se o cara disse: mãe, me deixa ir. Meu lugar não é aqui". Uma citação direta às palavras que teriam sido proferidas por Renato.
Na sequência eu afirmo:
"Eu digo: vou aproveitar, vou cantar, vou dar sentido a isso aqui. Esqueço, deixo prá lá. Todos têm suas próprias razões", tentando me convencer de que isso era mesmo possível.
Voltando à entrevista, é engraçado como as pessoas pensam em sucesso de uma forma diferente da que penso. Antes de fazer televisão eu costumava dizer que era muito fácil pensar em mim como um fracasso ou como um sucesso, dependendo de quem me olhava.
Ora, vivi desde sempre do meu ofício. Escrevendo, compondo, atuando, dirigindo, cantando, dando aulas de teatro e de canto, fazendo eventos ou telegrama animado, dependendo da necessidade. Isso é sucesso. Tenho pouco dinheiro no banco, não posso viajar sempre que quero nem conhecer todos os lugares que sonhei, não tenho casa própria, nem casa na praia, etc, etc, etc... Isso é fracasso.
Fiz cinema, teatro, publicidade e tv, agora na maior emissora aberta do país em horário nobre. Isso é sucesso.
Quase ninguém que me vê na tv já me viu alguma vez no teatro. Isso é fracasso.
O homem que escapou à peste por pouco sou eu. Isso é sucesso.
O mundo ao meu redor é cada vez mais reacionário. Isso é fracasso.
Afinal, qual é balanço que podemos fazer do que vemos ao nosso redor?